Mestres carpinteiros navais de Pardilhó fazem nascer 3 moliceiros
Dois carpinteiros navais de Pardilhó finalizaram a construção de três novos barcos moliceiros cujo destino será navegar na Ria de Aveiro, não para a sua função original, a apanha do moliço, mas para uma renovada utilização, o lazer e turismo. António Esteves e Felizberto Amador são os últimos construtores artesanais em actividade que ainda hoje fazem nascer barcos típicos da zona ribeirinha.
No estaleiro do mestre António Esteves espreitava uma proa colorida de uma dessas embarcações emblemáticas da ria aveirense. Durante 5 semanas, o pardilhoense de 68 anos entregou-se, sozinho, de corpo e alma à construção do barco de 15 metros de comprimento que irá sulcar as águas em Ílhavo. São quase 3 toneladas de peso que foram esculpidas pelas mãos conhecedoras deste homem. Neste momento, a embarcação está ancorada no Cais da Bestida, na Murtosa.
Nos dias actuais, a motosserra veio simplificar a tarefa de trabalhar a madeira que, quando começou esta arte aos 10 anos de idade, era cortada com uma serra braçal utilizada por duas pessoas. De qualquer forma este continua a ser “um trabalho pesado, exige esforço”, diz António Esteves que chega a carregar para o seu estaleiro peças de madeira com 100 quilos. “O material vem em bruto e é preparado aqui”, explica.
A motosserra veio extinguir a serra braçal contudo as técnicas de construção são as originais. “Estes barcos não têm projecto, é utilizado um pau de pontos”, refere o construtor. “Admiro como era feito, tão simples, tão maravilhoso”. O pau de pontos que fornece as medidas a aplicar funciona como “uma escala e não falha nada”.
A paixão à construção naval e em especial ao barco moliceiro dá-lhe forças para continuar. “Faço aquilo que gosto e isso é o mais importante que se tem na vida”. António Esteves recorda o momento em que o mestre Henrique Lavoura, de Pardilhó, o entusiasmou a aprender o ofício no seu estaleiro, nas épocas áureas em que “havia muitos moliceiros e construtores, pelo menos 7 estaleiros em Pardilhó e todos a trabalhar”.
O sonho de criança viria a tornar-se realidade e a durar uma vida inteira. “Esta era a arte que eu esperava. Nunca me esquece as palavras dele, os pés até me formigaram. Eu nasci para isto, nasci para ser carpinteiro naval”, lembra com emoção. Não bastassem os olhos comovidos, António Esteves revela com palavras. “Sou apaixonado pelo moliceiro, sou louco por isto”. “Amor à arte é o que eu sinto. Gostava que o meu neto aprendesse porque um barco destes daqui a 30 anos seria um espectáculo. Mas vai-se acabar…”. O carpinteiro não adivinha bons ventos para o futuro da arte seja porque não há ninguém interessado em aprender, seja porque na sua opinião não é rentável.
Noutro estaleiro de Pardilhó, onde Felisberto Amador passa os seus dias, o sentimento de impotência também impera. Apesar de ter acabado de concluir dois barcos moliceiros para uma empresa do Porto para exploração turística na Ria de Aveiro e ter mais um mercantel encomendado, diz que “a burocracia complica, não deixam fazer nada”, lamenta. Na Ribeira do Nacinho, em Pardilhó, os dois barcos moliceiros de 15 metros aguardam imponentes, e impacientes para marear, a licença de navegação.
Assim como António Esteves, também Felisberto Amador se dedica ao restauro. Actualmente está a recuperar uma embarcação e tem já em espera um mercantel para reparar. O ano passado procedeu à reparação de dois mercantéis e construiu um barco de arte xávega.
Felisberto sente-se “feliz em trabalhar” e em construir embarcações tradicionais. Do seu estaleiro até já saíram barcos para o estrangeiro. “Está um moliceiro em Macau, bateiras em Angola, um moliceiro e um mercantel em França e um moliceiro na Alemanha”, este o último que exportou “há 4 ou 5 anos”.
“Não nasci com os pés na ria mas quase. O meu trisavô era carpinteiro naval”. Em criança “andava ao moliço e ao junco, o meu avô tinha barcos”, afirma o mais novo carpinteiro naval de Pardilhó, com 51 anos, numa altura em que o barco ainda desempenhava um papel importantíssimo na vida económica local. “Quase todas as famílias tinham barcos”. Felisberto ainda tem memória da uma Ria límpida. “A Ria via-se o fundo, o peixe a rabear lá em baixo…”.
Em Pardilhó, existem ainda mais dois artistas navais que se dedicam à restauração de barcos de madeira, José Duarte da Silva (Zé Pitarma) e Arménio Pereira de Almeida.
Nos anos 30, mil moliceiros navegavam na Ria de Aveiro (de Ovar a Mira) segundo o estudo do etnógrafo Domingos José de Castro numa pesquisa realizada localmente entre 1940 e 1943.